Biografia


O Retrato Mais Do Que Real
Encontro biográfico com Oscar Casares 
       Valter Hugo Mãe (Prémo Saramago) 

 

   Nas matas que circundavam os terrenos da casa dos pais, viviam os mais esdrúxulos seres, comunicantes de línguas desconhecidas, padecendo de belezas muito maiores do que as das pessoas da aldeia de Távora Santa Maria. Era para lá que se aventurava, em busca de linguagens mais próximas da sua introspecção quase inata, num modo intenso de ser criança e necessitar de diálogo com capacidades fracturantes para o mutismo a que se entregava. Sentia que alguma diferença o condenava a ter poucos ou nenhuns amigos, e mais grave se tornava a solidão quanto, mais só ficando, se distanciava por moto próprio, desconhecedor de como convocar os outros para a cumplicidade, e mesmo assustado com a cumplicidade.
   Era ainda muito novo, estudando na primária de Távora Santa Maria, quando encontrou e cedo perdeu a sua única amiga, a Catarina, tão cedo mudada para a Venezuela, de bagagem com a família e tudo, para não voltar. Com ela exploraria as matas e inventaria coisas de não poderem existir, ali metidas a viver entre as árvores e as ervas do chão. No agreste dos caminhos podiam encontrar lugares de brincar, fantasiando pormenorizadamente cada coisa para entrar num mundo mais adequado à vontade de aumentar as possibilidades do humano. Pouco depois de se despedir da amiga Catarina vê o seu percurso escolar passar para a preparatória de Arcos de Valdevez, onde acentua a ideia de ser hostilizado pelos desconhecidos, prejudicando a sua concentração e, consequentemente, o seu desempenho escolar. Nessa altura as suas notas descem e procura, um pouco perdido, fincar o pé em terreno novo, já mais ausente da liberdade de andar pelas matas, já mais enclausurado no perímetro académico, descobrindo, claramente, a fuga que existe na brancura do papel à espera de ser desenhado. Será nas artes manuais que encontra a terapia íntima de se acompanhar pelos seus anseios visionários, exercendo criativamente a solidão.
   A solidão é um exercício de quase todos os artistas na fase crucial da definição do seu carácter. A vontade inesgotável de encontrar uma companhia, de produzir um objecto de aptidão comunicacional que seduza e garanta aos outros a nossa disponibilidade para o acto relacional. Com tenra idade o Óscar definiu, inconscientemente, a necessidade de ser criativo, no fundo, a necessidade de inventar quanto lhe faltava, uma companhia reiterada e incondicional. Poderá ter sido impressionado para o desenho pela irmã, mais velha do que ele quatro anos, que passava bom tempo cobrindo cadernos. Acabaria por entender que pela sua mão todo um conjunto de brinquedos adviriam para seu deleite, brinquedos de ver, de imaginar, brinquedos de aumentar o mundo e fazer companhia.
   A primeira obsessão, lembra-se bem, e de certa forma não a perde, passa pelo rosto de Marilyn Monroe, a actriz com tanto de alegre anjo quanto de figura trágica e profundamente triste. Repetia vezes sem conta o seu rosto, refazendo em mil papeis o nariz, os olhos, a boca, no conjunto completo da sua identidade facial ou por partes, como quem aperfeiçoa peças de um todo antes de o poder montar.
   Nesse tempo, ensinava os olhos também para os vestidos que a sua mãe de ascendência Espanhola desenhava. Ligada à criação de costura, a mãe trazia a casa as clientes para provas de vestidos com tecidos finos, ornamentados, provocadores de infinitas nuances de cor e múltiplas sensações. Naqueles vestidos, ele haveria de encontrar o universo fantasioso de que tanto gostava, como se cada mulher assim se recriasse, se reinventasse como alguém parcialmente novo, alguém que não teria sido até então.
   Estava ali traçada a linha fundamental para a sua personalidade artística: a componente cénica da vida; vista quer nas senhoras aperaltadas que visitavam a mãe, quer na arte cinematográfica, marcada fundamente pela necessidade de se ser outro. Esta marca estará em todo o seu trabalho até à actualidade.
   No sétimo ano de escolaridade muda-se para Braga, ingressando na E.S.C.A, um lugar de ensino da arte, onde, pela primeira vez, e através da mestria de sua tutora, a Professora Maria Magalhães, sente que a expansão permitida a um criativo lhe dá uma vantagem que até ali não pudera auferir. Levará muito tempo a dissipar as nuvens pairando sobre a sua cabeça que lhe conferiram uma infância atribulada e demasiado fechada, mas foi certo que a entrada numa escola onde a arte era entendida e promovida, lhe abriu caminho para uma predisposição do sucesso, apostando na descoberta de mais e melhores métodos de desenho e pintura, procurando extrair das suas capacidades a satisfação possível que se reflectiu numa conquista merecida - a conclusão das Oficinas de Artes com 20 valores.
   O caminho é descoberto pela sua própria natureza, uma vez que os familiares não estariam, na altura, convencidos de que pudesse profissionalizar-se como artista plástico. Nesse tempo, haveria de receber a diária que os pais lhe davam para o almoço e o lanche na escola e guardá-la, substituindo a fome pelo prazer de, com a quantia junta e suficiente, comprar pincéis e tintas com que ia cobrindo cartões, primeiro, depois papeis finos de desenho e, mais tarde, telas.
 

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